Coringa (2019) – Análise Técnica
“Está afim de ouvir outra piada, Murray? O que você consegue quando cruza um doente mental solitário com uma sociedade que abandona ele e trata ele feito lixo? Eu te digo o que consegue. Você consegue a merda que merece”.Arthur Fleck, o Coringa.
Cesar Romero foi o Palhaço; Jack Nicholson foi o Gangster; Mark Hamill foi a voz; Heath Ledger engrandeceu o símbolo sendo o Anarquista, Cameron Monaghan foi o Maníaco, Jared Letto foi o Psicopata e, quando imaginávamos que não haveria outro a incorporar um antagonista tão profundo e cheio de camadas, sendo ousado o bastante para segurar sozinho um filme que carrega seu nome e sem capa, vestido de morcego, surge Joaquin Phoenix, como Arthur Fleck, o Coringa que é a Vítima.
A ideia não surgiu tão de repente. Os roteiristas Scott Silver e Todd Phillips tinham o argumento desde 2016 e estavam negociando com a Warner (detentora dos direitos dos personagem da DC Comics), mas nesse ano a distribuidora estava focada no universo compartilhado dos heróis e um filme independente, sem nexo nenhum com o calendário que estavam planejando para “Os Super Amigos” não agregaria em nada, além de ser muito arriscado. Em 2017 conseguiram a atenção da Warner para que apresentassem um roteiro e ele foi feito quase de imediato pela dupla, chamaram Martin Scorsese para ajudar na produção e ele até começou com os preparativos, mas houve uma prioridade para ele. Um antigo conhecido, o roteirista Steven Zaillian (conhecido por A Lista de Schindler, Missão: Impossível e que trabalhou com Scorsese em Gangues de Nova York e Life Itself – A vida de Roger Ebert) o chamou, pois acabara de fechar um belo acordo com a Netflix para adaptar um roteiro do livro “Ouvi dizer que você pinta paredes” e futuramente, iríamos conhecer o trabalho da dupla como “O Irlandes”, mas esse é assunto para outro texto. Scott e Todd estavam sem ajuda na produção, mas conseguiram um apoio do experiente ator e produtor Bradley Cooper (O Lado Bom da Vida e Sniper Americano) e Emma Tillinger Koskoff (O Lobo de Wall Street). O primeiro a entrar para o casting seria Joaquin Phoenix (Ela), em Fevereiro de 2018 e escalado para o papel principal em Junho, com as gravações entre Setembro e Dezembro do mesmo ano.
Coringa narra a vida adulta de Arthur Fleck, um homem que, na década de 80, tenta cuidar sozinho da sua mãe, que sofre com algum tipo de demência ou transtorno, enquanto trabalha para a Ha-Has, uma agência que aluga palhaços, streapers e mágicos. Arthur também escreve textos de stand-up comedy no diário que sua terapeuta deu a ele, com uma mistura de piadas e experiências pessoais com a esperança de que suas anotações possam ter graça para alguém um dia. Arthur sofre com discriminação por sua inocencia e ingenuidade, amigos e desconhecidos o mal tratam, fisica e psicologicamente. Um último detalhe, Arthur tem uma rara e desconhecida doença que o faz rir quando se encontra em condições de stress e nervosismo.
O filme aborda, em termos muito sucinto, a discriminação que praticamos diante de alguém propicio à humilhação. A começar com o Arthur palhaço, depois com o Arthur indefeso, seguindo para o Arthur débil, o Arthur acuado e, porque não, o Arthur órfão. Todos à sua volta, diminuem o personagem por não entender ou, ao menos, se familiarizar com alguma de suas dificuldades. Com um único ressalvo, Gary (Leigh Gill) o anão, por motivos que não haveria a necessidade de explicar, mas pela deficiência que carrega, Gary se compadece com Arthur pois, imagino eu, ele era (e continua sendo) o alvo de piadas e chacotas na agência de palhaços quando Fleck ainda não trabalhava lá. Vemos nossas vidas perfeitas e sem dificuldades, onde as conquistas e ganhos nos afastam dos miseráveis, não nos permitindo ter empatia e colocando em nós, um ego inflado que nos permite tratar pessoas necessitadas com desprezo e desumanidade. Isso parece abominável a um olhar compadecido, não é mesmo? Mas acontece com mais frequência do que imaginamos e, infelizmente, ultrapassa as telas dos cinemas. O argumento de Coringa, no primeiro ato, é mostrar que, numa cidade grande como Gotham, Nova York, São Paulo ou Curitiba, existem transeuntes despreocupados e, ao mesmo tempo, aflitos com suas condições financeiras, pessoais e profissionais, não se dando conta de que há pessoas em situações piores, com problemas insoluveis e, como se fosse uma escala, se vendo um acima do outro, surge a apatia, a discriminação, o preconceito e a humilhação. A partir desse ponto de vista, nossos problemas podem ser deixados de lado por um momento para que possamos ignorar ou desfavorecer os de condições inferiores, tornando o ambiente em que vivemos uma verdadeira selva, com seus predadores excepcionais e suas presas inválidas. No filme, isso se torna tão claro que, durante uma greve dos lixeiros, o habitat natural é uma flora de lixo e poluição, já que a classe operária e assalariada estaria lutando por condições melhores de se viver em Gotham. Mas como a arte imita a vida, essa greve retratada no filme realmente aconteceu em 1968, quando Nova York ficou quase duas semanas sem a coleta de lixo, Houve um desrespeito com a classe trabalhadora quando não foi aceito o aumento de salário e condições melhores de trabalho e aposentadoria, o prefeito da época, John Lindsay, disse não acatar as solicitações da greve por questão de princípios e, o líder do sindicato disse em resposta que “Princípios não iriam limpar a cidade”.
Scott Silver é um roteirista dedicado em seus trabalhos, possui projetos autorais, onde atua também como diretor, como o drama de 96, Johns e, também, o thriller policial The Mods Squad, de 99. Escreveu também obras de grande orçamento, como 8 Mile – Rua das Ilusões (2002), O Vencedor (2010) e Horas Decisivas (2016). Seus textos sempre contam a história pela perspectiva do protagonista e é pego numa narrativa em movimento, os personagens já se conhecem e as afinidades e conflitos já estão fundamentadas, o que marca no roteiro são os diálogos. Scott deixa bem claro quem são os vilões, os mocinhos e as vítimas em seus scripts e isso só muda no Coringa, que conhecemos o personagem como o arqui-inimigo do Batman, tendo uma mente brilhante e sociopata, mas no filme vemos apenas o Arthur, uma criança (intelectual) com seus 40 anos sofrendo abusos sociais. Então, eis que aparece o verdadeiro vilão, a sociedade.
Todd Phillips ajudou no roteiro, mas não trouxe nada de sua bagagem para Coringa. Seu foco (como diretor e roteirista) foi, quase que todo, em comédia. Produziu obras como a trilogia Se Beber Não Case (2009, 11 e 13), Um Parto de Viagem (2010), Escola de Idiotas (2006) e Cães de Guerra (2016), além de trabalhar junto com Bradley Cooper como produtor, na série Sem Limite (2015-16). Todd costuma manter a equipe técnica e elenco quase sempre em todos os filmes, com algumas variações que sofrem durante os anos, apesar de o elenco ser totalmente novo para o filme, os profissionais da produção são praticamente os mesmos. No passado, suas produção, roteiros e direção era quase que voltada 100% para comédia e ele faz isso muito bem. A parte “a sociedade é o vilão” pode ter vindo dele, pois isso é muito bem questionado nos filmes supracitados, a burocracia, a legislação de alguns estados (Las Vegas), o sistema de ensino, palestras e auto ajuda, a sociedade está sempre presente nos filmes de Todd e toma um papel antagônico neles, seu método de direção está em construir personagens bidimensionais no primeiro ato e desconstruí-los em seguida, as piadas são usadas para diminuir o personagem principal para que este, em seu momento, supere a baixa expectativa do público, fazendo a virada no terceiro ato. Em Coringa, Todd dirigiu o filme com um cuidado exagerado, já que, em Cães de Guerra, o teor dramático não funcionou muito e o filme só é interessante por conta da comédia. O diretor e Joaquin Phoenix trabalharam incansavelmente para construir o alter ego do protagonista progressivamente no filme, a ideia era que a cada cena, víssemos menos o Arthur e mais o Coringa, logo no começo do filme vemos Arthur em sua totalidade, a trama só confirma o que vimos nos primeiros minutos, Arthur sozinho diante de seu reflexo, com sua máscara (a maquiagem), chorando por ter que pôr um “happy face” no rosto, algo que vemos sua mãe incluir isso na personalidade dele e que acaba por transformar num fardo, mas que, em sua construção, vira um símbolo.
Todd conseguiu criar a sensação de metamorfose de Arthur graças aos olhos e lentes de seu Diretor de Fotografia, Lawrence Sher, que o acompanha desde o primeiro Se Beber Não Case. Em Coringa, ele usa close-up extremos para enquadrar os olhos e expressões de Joaquin, ao mesmo tempo que trabalha com planos abertos para mostrar a grandiosa Gotham City, um detalhe importante aqui é que Lawrence trabalhou com planos que lembrassem cenas dos quadrinhos, as posições das câmeras traziam informações dos personagem e cenários, a própria cidade pode ser vista como antiga e claustrofóbica quando não vemos muito o horizonte nos últimos planos, mas também enorme e moderna quando vemos as longas ruas e trilhos de metrô, por exemplo. O Cineógrafo tem muita experiência e consegue captar a alma do filme e trazer isso em tela. Seus maiores trabalhos recentes fora do “círculo Todd Phillips” é Godzilla: Deuses e Monstros (2019), Lições em Família (2014) e o Ditador (2012). Suas propostas sempre dependem muito da Direção de Arte para poder mostrar a interação dos personagens com o ambiente e neste filme, foi trazido para o time o experiente Mark Friedberg, que trabalhou em Se a Rua Bale falasse (2018) e Amigos Para Sempre (2017). Mark adotou a proposta do filme e trabalhou muito nas cores quentes e frias em situações diferentes no início, mas que iam se misturando ao longo do trabalho. Arthur era o contraste azul em meio as tardes ensolaradas da cidade e dos tons da parede do apartamento da mãe, Arthur se utiliza da mesma cor, quando se imagina no talk show do apresentador Murray Franklin (personagem de Robert De Niro), mas conforme a entidade do Coringa vai se fazendo mais presente, as cores se misturam até que os tons quentes se tornem predominantes. Esse conflito de cores, juntamente com o Design da cidade e todo o lixo que vemos, nos causa uma sensação de desconforto e incômodo, uma intenção de tentar mostrar o que se passava pela cabeça de Arthur. Mark Friberg conhecia muito bem Nova York para saber lugares exatos de se gravar cenas como praças, teatros, as proximidades do apartamento de Arthur e também da Agência Ha-Has. Mas claro que todo o ambiente foi intensificado em caos e distúrbio com a ajuda dos efeitos especiais.
O grupo Scanline VFX cuidou de tudo que Todd, Lawrence e Mark planejaram para o filme, os detalhes dos efeitos visuais são imperceptíveis no produto final, desde o último plano dos cenários com seus prédios e ruas se estendendo até não haver luz do sol direta, algumas sacolas de lixo que dão o ar de poluição por conta da greve, as fachadas de época e as fumaças de bueiros e esgotos e algumas correções nos sets de filmagens que denunciavam a época de gravação em conflito com a época da ficção. Tudo sendo cuidado para que fosse o mais natural possível, diferente de outros trabalhos da empresa, como quase todos os filmes dos super heróis Marvel e DC Comics, além de Tomb Raider: A Origem (2018) e as series Game of Thrones (2011 -19) e Stranger Things (2016 – ). Prova de que foi tudo pensado para não parecer CGI, a cereja do bolo da equipe Scanline é algo que foi creditado para a equipe de maquiagem, o último sorriso de Arthur, feito com seu próprio sangue, em cima do carro de polícia nas cenas finais do filme, a ideia era de poupar tempo com retomadas e fazer perfeitamente o sorriso do palhaço no rosto de Arthur, enquanto a câmera saia de um close-up para um plano aberto, se afastando por cima para mostrar o caos estabelecido na cidade. Mas, com exceção desta cena em particular, a dupla Kay Georgiou e Nicki Ledermann trabalharam muito para fazer de Phoenix o personagem certo. A ideia era que Arthur cortasse o próprio cabelo e não o lavasse diariamente, por isso Nicki pintou semanas antes de castanho escuro e deixou desbotar, também foi pensado na maquiagem do palhaço para Phoenix, já que este é vegano e queria conhecer os compostos de toda a maquiagem feita para ele. Nick também participou da equipe e foi indicada a premiação pela maquiagem de O Irlandes (2019) e da primeira temporada da série de TV Sex and the City (1998). Enquanto Kay, já foi indicada às premiações por Lincoln (2013), Carol (2015) e Titanic (1997).
Jeff Groth fez a edição e trabalhou com Todd desde o terceiro filme da trilogia Se Beber Não Case. Sua edição é exata nos momentos de fade out das cenas. É interessante como Jeff corta as cenas sem que elas realmente terminam e que isso alimenta a curiosidade sobre a rotina do personagem, mas a frente do filme vemos, por exemplo, que a personagem da atriz Zazie Beets, a vizinha Sophie Dumond, não estava realmente do lado de Arthur em momentos que parece estar e, neste momento há cortes em flashback sem ela, no velho estilo “Clube da Luta”, nos fazendo lembrar sobre a escrisofenia de Arthur. A edição trabalha muito bem junto a direção e atuação, pois enquanto todos estão se preocupando em criar a metamorfose de Arthur para o Coringa, a edição tenta nos fazer esquecer se suas deficiências mentais para nos impactar com cenas específicas como a que ele ri no ônibus ou quando está fugindo do Arkham Asylum com a ficha médica de sua mãe. Talvez esse tenha sido o trabalho de maior alcance de Jeff, mas ele também chegou a montar vários documentários antes da parceria com Scott, além também de alguns episódios da série Community (2009 – 15).
Outro destaque que podemos dar no filme é o som, que em todo momento podemos perceber que estamos em uma cidade grande, com tráfego ao fundo, pessoas conversando e gritando, bater de asas de pombos e metrôs correndo em trilhos, ao mesmo tempo que também podemos perceber o cuidado que há no som ao retratar a solidão de Arthur quando todos os sons ao redor ficam mais distante enquanto ele entra no seu transe pessoal. O mérito desse cuidado fica para Alan Robert Murray, que trabalhou em grandes projetos como Nasce uma Estrela (2018), A Chegada (2016), Sniper Americano (2014) e os dois filmes de Sicario (2015 e 2018). Mas aqui, em Coringa, a trilha sonora fazia parte da ambientação de Arthur em Gotham, então dividimos o crédito para a compositora Islandêsa Hildur Guðnadóttir, que ganhou o Oscar com sua trilha sonora original. Seu processo criativo teve início lendo o roteiro e tendo como referência, o espetáculo circense, músicas de Saloon e, para a canção vencedora, a condição mental de Arthur e seu dilema sobre a sociedade. Ela também trabalhou com Alan em Sicario e em Maria Madalena (2018).
Para finalizar, podemos voltar ao assunto da metamorfose de Arthur. Em alguns momentos não vemos ele rir quando está nervoso. No início do filme, por exemplo, quando ele apanha dos adolescentes que roubaram sua placa, ele fica caído no chão com dor, mas ainda encontra tempo para apertar o dispositivo que solta água na flor de sua lapela, outro momento é quando Arthur é demitido, na cabine telefônica e também quando interrogado pelos policiais, na frente do Hospital. Talvez essas sejam situações em que Arthur se descobre como personagem e entende que ninguém está a favor dele, criando em sua cabeça as condições perfeitas do anarquismo. O ápice do filme, é no programa de Murray Franklin, quando Arthur é convidado e, no camarim, pede para ser apresentado como Coringa e sua entrada torna a assinatura da persona em todo o filme, a dança, como se fosse uma última postura, Coringa entra no palco calmo, descontraído e pleno, sabendo exatamente o que quer mostrar e como mostrar. Naquele momento não há mais Arthur, não há mais vítima, não há mais o doente mental discriminado pela sociedade. Há a cura desse câncer e ela não é passiva. Algo muito parecido com o pensamento de Travis Bickle, personagem de Robert DeNiro em Taxi Driver, uma singela homenagem a Martin Scorsese. Arthur pensava em se matar no programa de Murray dando valor a uma de suas piadas “Espero que minha morte faça mais sentid centavos que minha vida (correção feita em seus diario)” e Coringa faz isso acontecer, matando Arthur em seu psico e assumindo o dominio da mente e corpo, causando ainda mais empacto as suas palavras ao matar Murray ao vivo. Coringa termina o filme no carro da polícia achando lindo todo o caos estabelecido e sendo liberto pelo que, pode se entender, seria um seguidor.
Vemos uma jornada com começo, meio e fim de Arthur e compreendemos os motivos das suas ações, dando o sentimento de simpatia para com ele e pensando se não é realmente isso que uma cidade imunda como Gothan precisaria para mudar seus princípios. Mas façamos um exercício de imaginação: Imaginem que o filme começa na cena do Talk show, vemos algumas imagens de um cara fazendo piadas sem humor nenhum e, no dia seguinte, ele se encontra fantasiado no sofá do anfitrião. De repente vemos o tiro e vemos o caos. Consegue entender que, não importa o quanto vitimizamos ou tentamos justificar as ações de Arthur, transformamos ele em vilão por ser mais fácil de entender desta maneira, suas ações? Somos influenciados por pessoas com maior poder sobre a mídia e acreditamos no que for mais fácil de entender. O fato de termos a perspectiva de Arthur em todo o filme, fortalece a máxima que “Todo vilão é o herói de sua própria história” mas não vemos isso quando olhamos pelo panorama geral. Se terá, ou não, uma sequência, a vítima e doente mental que foi Arthur Fleck morreu e teremos apenas Coringa: o Palhaço, o Gangster, a Voz, o Anarquista, o Maníaco e Psicopata.
Título Joker (Original)
Ano produção 2019
Dirigido por Todd Phillips (I)
Estreia 3 de Outubro de 2019 ( Brasil )
Duração 122 minutos
Classificação 16 – Não recomendado para menores de 16 anos
Gênero Drama Policial
Texto produzido para:
IFPR • Instituto Federal do Paraná
Curso Técnico em Produção de Áudio e Vídeo
Formação de Repertório