Mississipi em Chamas – Análise Técnica

FIQUEM QUIETOS E DEIXEM QUE EU FALO

 

 

Pra mim, é um pouco difícil falar ou escrever sobre filmes que abordam o tema da luta contra o racismo, já que, quem escreve essa análise, teve em sua vida os privilégios sociais por conta do seu gênero, raça, crença, grau de escolaridade, escala financeira e opção sexual. Mas, como disse Desmond Tutu, “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Então, mesmo que você seja branco, hétero, de família católica e longe de ser pobre, temos que se impor às discriminações estabelecidas por uma sociedade ignorante e preconceituosa. Mississipi em Chamas conta a história de um povo negro da cidade de Filadélfia que sofre com a segregação racial, e recebe uma dupla de agentes federais que investigam o desaparecimento de três jovens militantes dos direitos civis. O filme de 88, escrito por Chris Gerolmo e dirigido por Alan Parker, é baseado num caso verídico que ocorreu em 1964 e, infelizmente, não se resume apenas àquela época, que faz a obra não ficar datada. Apesar dos carros, figurinos, música e até mesmo a base técnica de produção, o filme se faz tão presente hoje, como foi há três décadas. 

Fictional History — Mississippi Burning is definitely a white film,...

Chris Gerolmo, que roteirizou o filme, não tem um currículo tão grande ou expressivo. No mesmo ano lançou um roteiro original, Gritos de Revolta, com Richard Gere e John Malkovich e, num hiato de quase vinte anos, voltou a escrever pequenas séries, como a primeira temporada de Over There (2005) e The Bridge (2013). Seu texto mais aclamado, com certeza, foi Mississipi. Onde ele trata de uma narrativa linear do ponto de vista de dois protagonistas, sem flashbacks e, onde os núcleos paralelos fluem sem a necessidade de mostrar isso ao espectador. Coadjuvantes e, até mesmo, figurantes, têm interações com personagens maiores que nos fazem entender seus medos, suas raivas e suas intenções. Os diálogos são muito bem escritos nesse ponto e o terceiro ato impressiona com sua simplicidade satisfatória.

 

Alan Parker, por sua vez, foi um grande diretor do gênero cult nas décadas de 80 e 90. A Academia de Cinema de Hollywood (instituto responsável pela premiação do Oscar) o chamava de Camaleão, pelo seu talento em poder ser versátil dentro da sua arte. Seus trabalhos mais prestigiados, além do filme em questão, são O Expresso da Meia Noite (1978) e Pink Floyd – The Wall (1982). Mas outras obras também foram bem vistas pelo público e pela crítica, como seu primeiro trabalho autoral, Bugsy Malone – Quando as Metralhadoras Cospem (1976), nele Parker escreve e dirige uma realidade onde crianças são mafiosas e todo o contexto do gênero é voltada para uma sátira infantil. Seu último trabalho foi em 2003 com A Vida de David Gale, onde um professor ativista que luta contra a pena de morte é condenado, injustamente, com a mesma pena que combate e repudia, por um assassinato de outro professor. Além do musical Fama (1980) e Coração Satânico (1987), Parker trabalhou em tantos outros filmes, sempre com grande elenco envolvido. Seu estilo de interpretar os roteiro trouxe, em cada filme, um detalhe diferente de direção. Ele sabia trabalhar muito bem com cenas internas e externas, sabia trabalhar também no aprofundamento de seus personagens e na fluidez de suas narrativas. Alan Parker se aposentou da cadeira de diretor para ser pintor, “…adoro fazer arte onde eu não precise de outras 100 pessoas trabalhando para mim”. Parker morreu em Londres aos 76 anos, no ano de 2020.

 

Num contexto onde se fala da luta dos direitos dos negros dentro da sociedade, o filme, que retrata isso, deixa de fora o elemento principal. O negro. Claro que temos interação de personagens negros, como no início do filme, onde os três militante estão a caminho da Filadélfia no meio da noite e são abordados pelos policiais. Dentre os três jovens, um é negro e é calado pelo amigo para não criar mais problemas com o oficiais que o fazem encostar o carro e, durante a abordagem, matam todos a sangue frio. Na história real, esses três ativistas estavam a caminho de uma passeata pacífica em protesto à proibição do voto das pessoas de cor. Eles foram abordados e levados a delegacia de Filadélfia, passaram a noite na prisão e saíram de manhã, mas foram seguidos pelos assassinos, que mais tarde descobriu-se serem os próprios policiais que realizaram a abordagem na entrada da cidade. Esse diálogo no início do filme, antes da morte dos rapazes, pode ser interpretado como o que foi escrito nesse texto em seu primeiro parágrafo. A frase “Fiquem quietos, deixem que eu falo e vai ficar tudo bem” ditas por uma pessoa branca para uma pessoa negra é como se nós, enquanto brancos, entendêssemos o sofrimento das pessoas negras, suas lutas ou dores e quiséssemos ter suas vitórias, ou tomar o crédito por elas. Longe de mim, falar por um negro, tomar seu direito de fala, mas numa sociedade onde esse direito não têm valor nenhum, o branco têm que dizer, e dizer em voz alta.  Chris Gerolmo e Alan Parker não abafaram a voz e nem ofuscaram o brilho do povo negro, vamos lembrar que o filme foi gravado e produzido em 87/88 e o tema ainda era discutido (assim como ainda é) e as vozes negras ainda abafadas. Seus brilhos, ainda ofuscados. Chris e Alan estavam usando seus privilégios de roteirista e diretor para falar, enquanto brancos, pelo negros. O fato de não ter um protagonista, nem um coadjuvante, negro pode ser vista também como uma forma de protesto. No filme, todos tinham personalidades diferentes, arquétipos distintos e marcantes, mas o negro era uma unidade. Indiferente da quantidade de figurantes que se mostraram em cena, os negros atuaram como um povo que luta, além do direito de voto, para ter seus próprios arquétipos e suas personalidades singulares. Até o nome de Martin Luther King é dito por uma boca branca, tratando ele como o responsável de todas essas manifestações e protestos. Apesar de ser dito em tom de crítica e vilanizando o nome e os ideais do ativista, o sujeito não deixa de estar certo, sem se dar conta de que um branco está ajudando a proliferar o dono de uma voz negra.

 

“Anderson: Sabe, se eu fosse negro, eu provavelmente pensaria como eles.
Ward: Se você fosse negro, ninguém daria a mínima para o que você pensa.”

 

Geoffrey Kirkland foi o diretor de artes deste e de outros trabalhos de Alan Parker e, depois da aposentadoria de seu diretor, continuou com trabalhos de Cenografia em diversos filmes, alguns muito aclamados como Filhos da Esperança (2006) e O Nascimento de uma Nação. O trabalho minucioso em criar ambientações históricas ou pós apocalípticas dão ao profissional, prestígio na área. Kirkland trabalha com cuidado com cidades cenográficas e cenários que marcam época e carregam, por si só, uma história. Tal qual, como a periferia da Filadélfia e as igrejas da comunidade negra. Bares e restaurantes que receberam o cuidado de ter a área exclusiva para pessoas de cor, onde não recebiam luz elétrica e possuíam menos elementos em telas, deixando um conteúdo mais pobre. 

 

Peter Biziou é o diretor de fotografia e ganhador do Oscar de 1989, por Mississipi em Chamas. Ele tem um carinho especial no enquadramento americano e em deixar alguns detalhes no terceiro plano da fotografia, como nos detalhes da cidade para contextualizar a época e poder colocar, de maneira subjetiva, a violência por detrás da primeira camada da câmera, como por exemplo a cruz em chama ao fundo e centralizada na tela, enquanto Anderson (Gene Hackman) e Ward (Willem Dafoe) preenchem a regra dos terços. Peter também dirigiu a fotografia do aclamado filme de Monty Python A Vida de Brian (1979)  e o clássico Show de Truman: O Show da Vida (1998) entre outros. Ele trabalha muito bem com a perspectiva de profundidade das locações ou cenários e também na movimentação de câmera em cenas de tráfego. 

 

Gerry Hambling foi o responsável pela edição de todos os filmes de Alan Park e alguns outros trabalhos menores. Ele terminou e se aposentou, também, em A vida de David Gale. Suas edições seguem o roteiro e seu trabalho depende muito do acompanhamento dos diretores, ele não chega a ser um montador de renome, mas precisamos levar em consideração que, além de pertencer a primeira geração do cinema moderno e começar a fazer suas edições em 1956, com Dry Rot. Um dos filmes de maior orçamento e que, automaticamente, lhe deu mais trabalho foi Evita (1996), com planos mais abertos e personagens trocando cenas a distância faz com que o trabalho na edição seja fundamental para manter a continuidade dos planos.

 

Na equipe de som, temos a dupla que concorreu ao Oscar de 1989, Elliot Tyson (A Espera de Um Milagre e Um Sonho de Liberdade) na captação e gravação, também Danny Michael (Os Infiltrados e 8 Mile: Rua das Ilusões) na mixagem de som. Trevor Jones (O último dos Moicanos e Um Lugar Chamado Notting Hill) fez a trilha sonora. O filme não exige muito deste último departamento mas, é importante salientar que todos têm papéis de destaques em outros filmes, onde já trabalharam em animações, documentários e séries de TV.  Uma ressalva para o músico e compositor Trevor Jones, autor das obras que deram fundo ao núcleo a cena de encerramento (Justice in Mississippi) e para o Núcleo da KKK (Burning Cross). Já a dupla que representou o filme para concorrer pela estatueta, fez um excelente trabalho na ambientação das áreas externas e em lugares com muito eco e que houve um trabalho na gravação e pós produção para o cancelamento de ruídos e sons indesejados, como no momento em que o FBI aluga um cinema para montar o Centro de Pesquisa do caso. Cenas de dentro dos carros também tiveram a atenção redobrada para que não houvesse a percepção de fatores externos às falas.

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Surprise, Mothafocka

Mississipi em Chamas trata de um assunto tão atual hoje, quanto foi em 1988 ou 1964. Filmes que abordam o racismo têm que tratar o racista como o vilão que deve ser punido no final da história. Mas, levando o tema para o ano de 2021, não se pode tratar o negro como a dama indefesa trancafiada no quarto mais alto da torre mais alta. O racismo deixou de ser manifestado em público por estados, cidades e bairros, porém ainda atua no subconsciente dos que foram educados assim. Para tratar de maneira racista não é necessário usar palavras de ódio, basta fazer com que o outro se sinta menor, mais fraco ou inferior e, atualmente, a melhor forma de protesto é dar a oportunidade para o negro, do judeu, o gay e tantos outros, mostrarem o quão forte e grandes eles podem ser. O fato do filme não dar voz e nem tempo de tela suficiente aos negros, mostra o quanto tratávamos esse povo com um certo racismo estrutural na década de 80. Hoje, seria inaceitável um filme como esse, não ter um coadjuvante do núcleo negro com maior destaque em tela. Arrisco a escrever que o personagem Ward, de Willem Dafoe, poderia sim, ser negro, já que se tratava de um oficial recém formado que seguia toda a política e burocracia do FBI, enquanto Anderson já conhecia mais a lei das ruas e vinha de uma região sulista. Sabia como as coisas eram administradas e, não à toa, preferiu realizar sua própria investigação, não concordando com todos os critérios meticulosamente planejados de seu companheiro. O filme engrandece os dois agentes em seus triunfos finais, quando descobrem e punem os assassinos. Também ganham destaques quando acompanham a passeata pacífica em meio a multidão de manifestantes negros. Uma outra sutileza é colocar uma garota branca junto a uma turma de fiéis negros em frente a sua igreja incendiada que antes, dava um teto para seus cultos de adoração. Tanto Ward, quanto a menina, estão adotando a guerra do negro para si, um por indignação, outro por ingenuidade e inocência, mas ambos ainda não se dão conta de que a maior contribuição que podem oferecer é dar ouvidos as vozes negras que se erguem e pedir a atenção de outros para que também as ouçam. Hoje, o negro possui o direito de fala, ele sabe contar sua história melhor do que nós.

 

Título Mississipi em Chamas
Título Original Mississippi Burning
Ano produção 1988
Dirigido por Alan Parker
Roteiro Chris Gerolmo
Produtores Frederick Zollo
Geoffrey Kirkland
Robert F. Colesberry
Estreia 23 de Março de 1989 ( Brasil )
Duração 128 minutos
Gênero Drama / Policial
Países de Origem Estados Unidos da América

Texto produzido para:

IFPR • Instituto Federal do Paraná
Curso Técnico em Produção de Áudio e Vídeo
Formação de Repertório

Rafael Peregrino

Musica, filmes e livros me definem. Violão, café, papel e caneta me descrevem. Me fale um assunto e sempre terei algo a dizer. Fazer as pessoas rirem é o motivo da minha alegria